quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Charles Baudelaire



A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE
Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

EMBRIAGUEM-SE
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

O CONVITE À VIAGEM

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,

Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
— Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

 
REMORSO PÓSTUMO
Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,
num negro mausoléu de mármore, e não
tiveres por alcova e morada senão
uma fossa profunda e uma tumba chuvosa;

quando a pedra, oprimindo essa carne medrosa
e esses flancos sensuais de morna lassidão,
impedir de querer e arfar teu coração
e teus pés de seguir a trilha aventurosa,

o túmulo que tem um confidente em mim
- porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,
na insônia sepulcral dessas noites sem fim,

dir-te-á: "De que serviu, cortesã incompleta,
não ter tido o que em vão choram os mortos sós?"
- E o verme te roerá como um remorso atroz.
O ALBATROZ

 Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O Poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.


O CEU


Por onde quer que vá, sobre o mar, sobre a terra,
morador da cidade ou do campo distante,
no côncavo de um vale ou no alto de uma serra,
sob um clima de gelo ou sob um sol flamante,

mendigo tenebroso ou Creso rutilante,
quer se conserve em paz, quer se destrua em guerra,
- o Homem cai a tremer, em qualquer parte, diante
do Mistério que o Céu - trágico abismo - encerra. . .

Sempre o Céu! Sempre o Céu! - teto que se ilumina,
no teatro do mundo em que o Homem representa
- mascarado histriáo! - a comédia divina; 
em que o Homem - pobre ator, cheio de desenganos -
das paixões arrostando a terrível tormenta,
chora, blasfema e ri - há mais de dez mil anos...



UM MORTO ALEGRE

Numa terra sem vida, abandonada e dura,
quero eu mesmo cavar um buraco profundo,
onde possa esticar minha velha ossatura
para dormir tranqüilo, esquecido do mundo. 
Odeio o testamento, odeio a sepultura;
a esmolar compaixão como um vil vagabundo,
antes quisera ver minha carcaça impura,
inda viva servir de pasto a um corvo imundo.

Vermes, amigos meus sem olhos, sem ouvidos,
um morto vos procura alegre e descuidado!
Filhos da podridão, asquerosos e tortos.

Sem pena percorrei meus restos corrompidos,
e dizei-me se pode inda ser torturado
este corpo sem alma e mais morto que os mortos!


O RELÓGIO
Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.
Certo dia, um missionário, passeando no distrito de Nanquim,
notou que havia esquecido o relógio e perguntou as horas a um rapazinho.
Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império hesitou;
depois, pensando melhor, respondeu:
-Vou dizer.
Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando nos braços um gato,
muito gordo; e, fitando o animal, como se usa dizer, no branco do olho,
afirmou sem hesitação:
-Ainda não é exatamnente meio dia.
E era verdade.
Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de nome tão adequado,
aquela que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito,
-quer de noite, quer de dia, em plena luz ou na sombra opaca,
no fundo de seus olhos adoráveis
vejo sempre, nitidamente, a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene,
grande como o espaço, sem divisões de
minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada nos relógios,
e todavia leve como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se algum importuno me viesse interromper enquanto o meu olhar repousa sobre
este delicioso relógio, se algum Gênio descortês
e intolerante, algum Demônio do contratempo me viesse dizer :
-"Que é que estás a mirar com tamanha atenção?
Que buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a hora,
mortal prodígo e vagabundo?"
- eu responderia sem hesitar:-"Sim, vejo a hora: é a Eternidade."
Pois não é, senhora, que fiz um madrigal verdadeiramente
meritórioe tão cheio de ênfase quanto vós mesma?
Na verdade, tive tanto prazer em bordar esta preciosa galanteria que não
o vos pedirei nada em troca.

As Flores do Mal.



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Mário Quintana


Este nosso mundo

"Sentiu Adão que alguém se aproximava silenciosamente
E lhe tapava os olhos com carinho!
"Adivinha quem é, meu queridinho?!"

Quem mais podia ser senão a sua doce, a sua querida Evinha?
Adão sorriu com aquela brincadeira.

Voltou a sorrir-se para ela... Mas não:

A voz que ouvira não era dela, mas a voz sinuosa da Serpente,
Que acabara de devorar a maçã e a própria Eva!
E desde então ele ficou sem companheira nem nada

E teve, até agora,
De fazer tudo pela própria vida
Neste mundo do Diabo!"


Madrigal

"Tu és a matéria plástica de meus versos, querida...
Porque, afinal,
Eu nunca fiz meus versos propriamente a ti:
Eu sempre fiz versos de ti!"

o Eterno Cristo

"O povo adora e vive suspirando por um Messias,
Que o venha libertar de tudo no mundo,
Mas quando esse Dia Santo
Chega afinal,
Todos os seus crentes, cheios de espanto e medo,
A única coisa que conseguem fazer é apedrejá-lo!"


Da mesma idade

"Criança que brinca e o poeta que faz uns poemas

Estão ambos na mesma idade mágica!"

Bucólica

"Na solidão da noite
uma vaca, uma abençoada
vaca
muge:
o seu mugido é um rio de veludo morno,
voz de mãe e de amante:
quente e cariciosa...
- à mesma voz que tu, antes de me abandonares,
Tinhas sempre comigo!"


Um novo Cântico dos Cânticos

"Vamos compor, ó Bem-Amada, um novo Cântico dos Cânticos:

"Tu louvarás unicamente a ti!

Eu louvarei unicamente a mim!"

(É tão sincero quanto o outro, não achas?...)"


As tias

"Sempre estão nos acusando de alguma coisa,
Com o dedo em riste: "Meninos, não façam isto!
Não presta deixar os sapatos virados no chão com a sola para cima,
Nem nunca puxar dessa maneira as tranças da Adalgisa!"
No entanto não sabem
Que as crianças no fundo gostam disso
E que a violência é uma das formas mais deliciosas do amor...
A gente grande só tem ridículas briguinhas conjugais
Apenas para poderem se reconciliar depois!
Ai de nós, de nossa vida com elas...
As nossas intrometidas tias são eternas e de todos os sexos!"


Velório sem Defunto


OS HÓSPEDES

"Um velho casarão bem-assombrado
aquele que habitei ultimamente.

Não,
não tinha disso de arrastar correntes
ou espelhos de súbito partidos.

Mas a linda visão evanescente
dessas moças do século passado
as escadas descendo lentamente...
ou, às vezes, nos cantos mais escuros
velhinhas procurando os seus guardados
no fundo de uns baús inexistentes...

E eu, fingindo que não via nada.

Mas para que, amigos, tais cuidados?
Agora
foi demolida a nossa velha casa!

(Em que mundo marcaremos novo encontro?)"


A Vaca e o Hipógrifo





No ano passado...

"Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinaria sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:
"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras é que, nestas calçadas claras do ano bom:
Rechinam teus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem..."

Porta Giratória 













sábado, 5 de novembro de 2011

John Fante



“Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama.”

“O milagre aconteceu. Aconteceu assim: eu estava de pé à janela do meu quarto, observando um percevejo que rastejava ao longo do peitoril. Eram três e quinze de uma tarde de quinta-feira. Ouvi baterem à porta. Abri e lá estava ele, um estafeta dos telégrafos. Assinei o recibo, sentei-me na cama e pensei se o vinho finalmente acabara com o coração do Velho. O telegrama dizia: seu livro aceito enviando contrato hoje. Hackmuth. Era tudo. Deixei o papel flutuar até o tapete. Fiquei sentado ali. Então abaixei-me até o chão e comecei a beijar o telegrama. Rastejei para baixo da cama e simplesmente fiquei ali. Não precisava mais da luz do sol. Nem da terra, nem do céu. Simplesmente fiquei ali, feliz de morrer. Nada mais podia acontecer a mim. Minha vida havia terminado.”

“Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente“.

Pergunte ao Pó



"Permaneci deitado na noite branca vendo o mau hálito escapar em pequenas nuvens. Sonhadores, éramos uma casa repleta de sonhadores. A vovó sonhava com sua casa na distante Abruzzi. O meu pai sonhava em ver-se livre das dívidas e empilhando tijolos lado a lado com seu filho. A minha mãe sonhava com a divina recompensa de um marido que não se ausentava de casa. Minha irmã Clara sonhava em tornar-se uma freira e o meu irmãozinho Frederick mal podia esperar para crescer e tornar-se um cowboy. Fechando os olhos eu pude ouvir o zumbido dos sonhos pela casa e então adormeci".

"Seus olhos saltaram de espanto. Eu o soltei e ele se virou e entrou no ônibus. Eu me afastei, cuspindo o gosto de óleo enquanto ele desaparecia na nevasca. Meti as mãos nos bolsos e comecei a subir a Pearl Street, afundado os pés a caminho de casa, debaixo daquela tempestade sem sentido. Mas a neve tinha suas vantagens, afinal. Ela nos escondia dos outros, escondia nossas sardas e orelhas de abano e a estatura ridícula, enquanto passamos pelos outros fantasmas daquela desolação, cabeças pendidas, olhos abaixados, nossa culpa e inutilidade bem protegidos lá dentro".

1933 foi um ano ruim