quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Charles Baudelaire



A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE
Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tua vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!

EMBRIAGUEM-SE
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.

O CONVITE À VIAGEM

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,

Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
— Os sangüíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

 
REMORSO PÓSTUMO
Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,
num negro mausoléu de mármore, e não
tiveres por alcova e morada senão
uma fossa profunda e uma tumba chuvosa;

quando a pedra, oprimindo essa carne medrosa
e esses flancos sensuais de morna lassidão,
impedir de querer e arfar teu coração
e teus pés de seguir a trilha aventurosa,

o túmulo que tem um confidente em mim
- porque o túmulo sempre há de entender o poeta -,
na insônia sepulcral dessas noites sem fim,

dir-te-á: "De que serviu, cortesã incompleta,
não ter tido o que em vão choram os mortos sós?"
- E o verme te roerá como um remorso atroz.
O ALBATROZ

 Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico um cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O Poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
As asas de gigante impedem-no de andar.


O CEU


Por onde quer que vá, sobre o mar, sobre a terra,
morador da cidade ou do campo distante,
no côncavo de um vale ou no alto de uma serra,
sob um clima de gelo ou sob um sol flamante,

mendigo tenebroso ou Creso rutilante,
quer se conserve em paz, quer se destrua em guerra,
- o Homem cai a tremer, em qualquer parte, diante
do Mistério que o Céu - trágico abismo - encerra. . .

Sempre o Céu! Sempre o Céu! - teto que se ilumina,
no teatro do mundo em que o Homem representa
- mascarado histriáo! - a comédia divina; 
em que o Homem - pobre ator, cheio de desenganos -
das paixões arrostando a terrível tormenta,
chora, blasfema e ri - há mais de dez mil anos...



UM MORTO ALEGRE

Numa terra sem vida, abandonada e dura,
quero eu mesmo cavar um buraco profundo,
onde possa esticar minha velha ossatura
para dormir tranqüilo, esquecido do mundo. 
Odeio o testamento, odeio a sepultura;
a esmolar compaixão como um vil vagabundo,
antes quisera ver minha carcaça impura,
inda viva servir de pasto a um corvo imundo.

Vermes, amigos meus sem olhos, sem ouvidos,
um morto vos procura alegre e descuidado!
Filhos da podridão, asquerosos e tortos.

Sem pena percorrei meus restos corrompidos,
e dizei-me se pode inda ser torturado
este corpo sem alma e mais morto que os mortos!


O RELÓGIO
Os chineses vêem as horas pelos olhos dos gatos.
Certo dia, um missionário, passeando no distrito de Nanquim,
notou que havia esquecido o relógio e perguntou as horas a um rapazinho.
Ao primeiro instante, o garoto do Celeste Império hesitou;
depois, pensando melhor, respondeu:
-Vou dizer.
Decorridos alguns momentos, reaparecia, segurando nos braços um gato,
muito gordo; e, fitando o animal, como se usa dizer, no branco do olho,
afirmou sem hesitação:
-Ainda não é exatamnente meio dia.
E era verdade.
Por mim, ao inclinar-me para a bela Felina, a de nome tão adequado,
aquela que é ao mesmo tempo a honra do seu sexo, o orgulho do meu
coração e o perfume do meu espírito,
-quer de noite, quer de dia, em plena luz ou na sombra opaca,
no fundo de seus olhos adoráveis
vejo sempre, nitidamente, a hora, sempre a mesma, uma hora vasta, solene,
grande como o espaço, sem divisões de
minutos nem de segundos, uma hora imóvel que não é marcada nos relógios,
e todavia leve como um suspiro, rápida como um olhar.
E, se algum importuno me viesse interromper enquanto o meu olhar repousa sobre
este delicioso relógio, se algum Gênio descortês
e intolerante, algum Demônio do contratempo me viesse dizer :
-"Que é que estás a mirar com tamanha atenção?
Que buscas nos olhos dessa criatura? Vês acaso neles a hora,
mortal prodígo e vagabundo?"
- eu responderia sem hesitar:-"Sim, vejo a hora: é a Eternidade."
Pois não é, senhora, que fiz um madrigal verdadeiramente
meritórioe tão cheio de ênfase quanto vós mesma?
Na verdade, tive tanto prazer em bordar esta preciosa galanteria que não
o vos pedirei nada em troca.

As Flores do Mal.



segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Mário Quintana


Este nosso mundo

"Sentiu Adão que alguém se aproximava silenciosamente
E lhe tapava os olhos com carinho!
"Adivinha quem é, meu queridinho?!"

Quem mais podia ser senão a sua doce, a sua querida Evinha?
Adão sorriu com aquela brincadeira.

Voltou a sorrir-se para ela... Mas não:

A voz que ouvira não era dela, mas a voz sinuosa da Serpente,
Que acabara de devorar a maçã e a própria Eva!
E desde então ele ficou sem companheira nem nada

E teve, até agora,
De fazer tudo pela própria vida
Neste mundo do Diabo!"


Madrigal

"Tu és a matéria plástica de meus versos, querida...
Porque, afinal,
Eu nunca fiz meus versos propriamente a ti:
Eu sempre fiz versos de ti!"

o Eterno Cristo

"O povo adora e vive suspirando por um Messias,
Que o venha libertar de tudo no mundo,
Mas quando esse Dia Santo
Chega afinal,
Todos os seus crentes, cheios de espanto e medo,
A única coisa que conseguem fazer é apedrejá-lo!"


Da mesma idade

"Criança que brinca e o poeta que faz uns poemas

Estão ambos na mesma idade mágica!"

Bucólica

"Na solidão da noite
uma vaca, uma abençoada
vaca
muge:
o seu mugido é um rio de veludo morno,
voz de mãe e de amante:
quente e cariciosa...
- à mesma voz que tu, antes de me abandonares,
Tinhas sempre comigo!"


Um novo Cântico dos Cânticos

"Vamos compor, ó Bem-Amada, um novo Cântico dos Cânticos:

"Tu louvarás unicamente a ti!

Eu louvarei unicamente a mim!"

(É tão sincero quanto o outro, não achas?...)"


As tias

"Sempre estão nos acusando de alguma coisa,
Com o dedo em riste: "Meninos, não façam isto!
Não presta deixar os sapatos virados no chão com a sola para cima,
Nem nunca puxar dessa maneira as tranças da Adalgisa!"
No entanto não sabem
Que as crianças no fundo gostam disso
E que a violência é uma das formas mais deliciosas do amor...
A gente grande só tem ridículas briguinhas conjugais
Apenas para poderem se reconciliar depois!
Ai de nós, de nossa vida com elas...
As nossas intrometidas tias são eternas e de todos os sexos!"


Velório sem Defunto


OS HÓSPEDES

"Um velho casarão bem-assombrado
aquele que habitei ultimamente.

Não,
não tinha disso de arrastar correntes
ou espelhos de súbito partidos.

Mas a linda visão evanescente
dessas moças do século passado
as escadas descendo lentamente...
ou, às vezes, nos cantos mais escuros
velhinhas procurando os seus guardados
no fundo de uns baús inexistentes...

E eu, fingindo que não via nada.

Mas para que, amigos, tais cuidados?
Agora
foi demolida a nossa velha casa!

(Em que mundo marcaremos novo encontro?)"


A Vaca e o Hipógrifo





No ano passado...

"Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinaria sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:
"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".
Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...
Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova. Por essas e por outras é que, nestas calçadas claras do ano bom:
Rechinam teus sapatos rua em fora.
Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!

Tinha um surrão todo de penas cheio
Um peso enorme para carregar!
Porém as penas, quando o vento veio,
Penas que eram... esvoaçaram no ar...

Todo de Deus me iluminei então,
Que os Doutores Sutis se escandalizem:
"Como é possível sem doutrinação?!"

Mas entendem-me o Céu e as criancinhas.
E ao ver-me assim, num poste as andorinhas:
"Olha! É o Idiota desta Aldeia!" dizem..."

Porta Giratória 













sábado, 5 de novembro de 2011

John Fante



“Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama.”

“O milagre aconteceu. Aconteceu assim: eu estava de pé à janela do meu quarto, observando um percevejo que rastejava ao longo do peitoril. Eram três e quinze de uma tarde de quinta-feira. Ouvi baterem à porta. Abri e lá estava ele, um estafeta dos telégrafos. Assinei o recibo, sentei-me na cama e pensei se o vinho finalmente acabara com o coração do Velho. O telegrama dizia: seu livro aceito enviando contrato hoje. Hackmuth. Era tudo. Deixei o papel flutuar até o tapete. Fiquei sentado ali. Então abaixei-me até o chão e comecei a beijar o telegrama. Rastejei para baixo da cama e simplesmente fiquei ali. Não precisava mais da luz do sol. Nem da terra, nem do céu. Simplesmente fiquei ali, feliz de morrer. Nada mais podia acontecer a mim. Minha vida havia terminado.”

“Olhei para os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente“.

Pergunte ao Pó



"Permaneci deitado na noite branca vendo o mau hálito escapar em pequenas nuvens. Sonhadores, éramos uma casa repleta de sonhadores. A vovó sonhava com sua casa na distante Abruzzi. O meu pai sonhava em ver-se livre das dívidas e empilhando tijolos lado a lado com seu filho. A minha mãe sonhava com a divina recompensa de um marido que não se ausentava de casa. Minha irmã Clara sonhava em tornar-se uma freira e o meu irmãozinho Frederick mal podia esperar para crescer e tornar-se um cowboy. Fechando os olhos eu pude ouvir o zumbido dos sonhos pela casa e então adormeci".

"Seus olhos saltaram de espanto. Eu o soltei e ele se virou e entrou no ônibus. Eu me afastei, cuspindo o gosto de óleo enquanto ele desaparecia na nevasca. Meti as mãos nos bolsos e comecei a subir a Pearl Street, afundado os pés a caminho de casa, debaixo daquela tempestade sem sentido. Mas a neve tinha suas vantagens, afinal. Ela nos escondia dos outros, escondia nossas sardas e orelhas de abano e a estatura ridícula, enquanto passamos pelos outros fantasmas daquela desolação, cabeças pendidas, olhos abaixados, nossa culpa e inutilidade bem protegidos lá dentro".

1933 foi um ano ruim


segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Adélia Prado

"Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva".


"Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração".

"Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdôo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria".

"Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror".

"Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez".


"Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes".


"Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus".
Poesia Reunida


domingo, 30 de outubro de 2011

Isabel Allende



"Outono. Segundo o dicionário, outono não é apenas a estação dourada do ano, mas a idade em que se deixa de ser jovem. Willie estava quase com 60 e eu percorria com passo ainda firme a década dos 50, mas minha juventude acabou junto com você, Paula, no corredor dos passos perdidos daquele hospital madrileno. Senti a maturidade como uma viagem para dentro e o começo de uma nova forma de liberdade: podia usar sapatos confortáveis e já não tinha que fazer dieta nem agradar a meio mundo, só àqueles que realmente me importam. Antes tinha as antenas sempre prontas para captar a energia masculina no ar; depois dos 50 as antenas enferrujaram e agora só Willie me atrai. Bem, Antonio Banderas também, mas isso é puramente teórico. Willie e eu tivemos o corpo e a mente mudados. A memória prodigiosa dele começou a dar uns tropeços, já não conseguia lembrar os números de telefone de todos os seus amigos e conhecidos. Suas costas e joelhos enrijeceram, suas alergias pioraram, e me acostumei a ouvi-lo pigarrear a todo instante como uma locomotiva velha. Por sua vez, ele se resignou às minhas peculiaridades: os problemas emocionais me provocam cólicas e dor de cabeça, não posso ver filmes sanguinários, não gosto de reuniões sociais, devoro chocolate às escondidas, me irrito com facilidade e torro dinheiro como se crescesse em árvores. Neste outono da vida, por fim, nos conhecemos e nos aceitamos inteiramente; nossa relação enriqueceu. Estarmos juntos nos parece tão natural como respirar, e a paixão se*xual cedeu lugar a encontros mais tranqüilos e ternos. Nada de castidade. Nós nos apegamos, já não queremos nos separar, mas isso não significa que não tenhamos algumas brigas; nunca largo minha espada, por via das dúvidas.
Numa das viagens a Nova York, parada obrigatória em todas as turnês de promoção de meus livros, visitamos Ernesto e Giulia em sua casa de Nova Jersey. Eles nos abriram as portas – e o que vimos foi um pequeno altar com uma cruz, as armas de aiquidô de Ernesto, uma vela, duas rosas num vaso e uma foto sua, Paula. A casa tinha a mesma claridade e simplicidade dos ambientes que você havia decorado em tua curta vida, talvez porque Ernesto compartilhasse o mesmo gosto. “Ela nos protege”, disse Giulia sem a menor afetação, apontando teu retrato ao passar. Compreendi que essa jovem tivera a inteligência de adotar você como amiga em vez de competir com tua lembrança, e com isso ganhou a admiração da família de Ernesto, que havia adorado você, e da nossa, naturalmente. Então, comecei a planejar a forma para que se instalassem na Califórnia, onde poderiam fazer parte da tribo. Que tribo? Restava pouco dela: Jason em Nova York, Celia em outro casamento, Nico emburrado e ausente, meus três netos indo e vindo com suas malinhas de palhaço, meus pais no Chile, e Tabra viajando por recantos ignotos do mundo. Até Sabrina víamos pouco; ela tinha sua própria vida, já podia circular sozinha com um andador e pedira para o Natal uma bicicleta maior do que a que tinha.
- Estamos ficando sem tribo, Willie. Devemos fazer alguma coisa logo, ou acabaremos jogando bingo numa casa geriátrica na Flórida, como tantos velhos americanos, que estão mais sozinhos do que se morassem na Lua.
- Qual é a alternativa? – perguntou meu marido, certamente pensando na morte.
- Nos transformarmos num peso para a família, mas antes precisamos aumentá-la – informei.
Era uma brincadeira, claro, porque o mais terrível da velhice não é a solidão, mas a dependência. Não quero incomodar meu filho e meus netos com a minha decrepitude, embora não fosse nada mau passar meus últimos anos perto deles. Fiz uma lista de prioridades para meus 80 anos: saúde, recursos econômicos, família, cachorra, histórias. Os dois primeiros pontos me permitiriam decidir como e onde viver; o terceiro e quarto me acompanhariam; e as histórias me manteriam calada e divertida, sem atritos com ninguém. Willie e eu temos pavor de perder a lucidez e com isso Nico ou, pior ainda, estranhos, decidam por nós. Penso em você, filha, que esteve meses à mercê de desconhecidos antes que pudéssemos te trazer para a Califórnia. Quantas vezes você pode ter sido maltratada por um médico, uma enfermeira ou uma empregada, e eu não fiquei sabendo? Quantas vezes terá desejado, no silêncio daquele ano, morrer de uma vez e em paz?
Os anos transcorrem silenciosos, na ponta dos pés, zombando da gente em sussurro, e de repente nos assustam no espelho, nos acertam nos joelhos e nos cravam um punhal nas costas. A velhice nos ataca dia após dia, mas parece se tornar evidente ao final de cada década. Há uma foto minha, tirada aos 49 anos, apresentando O plano infinito na Espanha; é de uma mulher jovem, as mãos nos quadris, desafiante, com um xale vermelho nos ombros, as unhas pintadas e uns longos brincos de Tabra. Foi nesse exato momento, com Antonio Banderas a meu lado e uma taça de champanhe na mão, que me disseram que você acabava de dar entrada no hospital. Saí correndo, sem imaginar que a tua vida e a minha juventude estavam por terminar. Outra foto minha, um ano mais tarde, mostra uma mulher madura, os cabelos curtos, os olhos tristes, a roupa escura, sem enfeites. O corpo me pesava, eu me olhava no espelho e não me reconhecia. Não foi apenas tristeza que me envelheceu subitamente, porque, ao repassar o álbum de fotos familiares, pude comprovar que quando fiz 30 anos e depois 40 também houve uma mudança drástica na minha aparência. Assim será no futuro, só que, em vez de eu perceber a cada década, será a cada ano bissexto, como diz minha mãe. Ela vai vinte anos adiante de mim, abrindo caminho, mostrando como serei em cada etapa de minha vida. “Tome cálcio e hormônios, para que seus ossos não falhem, como os meus”, me aconselha. Repete que me cuide, que me ame, que saboreie as horas, porque tudo se vai muito rápido, que não deixe de escrever, para manter a mente ativa, e que faça ioga para poder me abaixar e calçar os sapatos sozinha. Acrescenta que não me esforce para preservar uma aparência jovem, porque os anos serão notados de qualquer forma, por mais que a gente disfarce, e não há nada mais ridículo que uma velha botando banca de lolita. Não há truques mágicos que evitem a deterioração, no máximo pode-se adiar um pouco. “Depois dos cinqüenta, a vaidade só serve para sofrer”, me garante essa mulher com fama de bonita. Mas a fealdade da velhice me assusta e penso combatê-la enquanto me restar saúde; por isso estiquei a cara com cirurgia plástica, já que não descobriram a forma de rejuvenescer com uma poção. Não nasci com a esplêndida matéria-prima de Sofia Loren, necessito de toda a ajuda que possa conseguir. A cirurgia equivale a desprender músculos e pele, cortar o que sobra e costurar a carne de novo na caveira, colada como malha de bailarino. Durante semanas tive a sensação de andar com uma máscara de madeira, mas no final valeu a pena. Um bom cirurgião pode enganar o tempo. Esse é um assunto que não devo comentar na frente de minhas Irmãs da Desordem ou de Nico, porque acham que a velhice tem a sua beleza própria, inclusive com verrugas peludas e varizes. Você era da mesma opinião, Paula. Sempre gostou mais dos velhos que das crianças".


A Soma dos Dias


"Todos os que viveram aquele momento, dizem que era por volta das oito da noite, quando apareceu Férula, sem que nada fizesse prever a sua chegada. Todos puderam vê-la com a blusa engomada, o molho de chaves à cintura e o coque de solteirona, tal como a tinham visto sempre em casa. Entrou pela porta da sala de jantar no momento em que Esteban estava trinchando o assado e reconheceram-na imediatamente, apesar de não a verem fazia seis anos e estar muito pálida e muito mais velha. Era um sábado e os gêmeos, Jaime e Nicolás, tinham saído do internato para passar o fim de semana com a família, de modo que também estavam ali. O seu testemunho é muito importante, porque eram os únicos membros da família que viviam afastados por completo da mesa de pé-de-galo, preservados da magia e do espiritismo pelo rígido colégio inglês. Primeiramente, sentiram um frio súbito na sala de jantar e Clara mandou fechar as janelas, porque pensou que era uma corrente de ar. Logo a seguir ouviram o tilintar das chaves e quase em seguida abriu-se a porta e apareceu Férula, silenciosa e com uma expressão distante, ao mesmo tempo que a Ama entrava pela porta da cozinha, com a travessa da salada. Esteban Trueba ficou com a faca e o garfo de trinchar no ar, paralisado pela surpresa e os três meninos gritaram, tia Férula! quase em uníssono. Blanca levantou-se para ir ao seu encontro, mas Clara, que se sentava ao seu lado, estendeu a mão e segurou-a por um braço. Na realidade, Clara foi a única que percebeu, ao primeiro olhar, do que estava passando devido à sua grande familiaridade com os assuntos sobrenaturais, apesar de que nada no aspecto da cunhada denunciasse o seu verdadeiro estado."

A Casa dos Espíritos




"A incerteza abalou o sistema nervoso de Beatriz. As amigas recomendaram-lhe cursos de ioga e de meditação oriental para amenizar o sobressalto em que vivia. Quando, com uma certa dificuldade, se punha de cabeça para baixo e com os pés para cima, com respiração abdominal e concentrando a mente no Nirvana, conseguia esquecer os problemas, mas a verdade é que não podia manter-se nessa posição todo o dia e, nos momentos em que pensava em si mesma, surpreendia-se perante a ironia da sua sorte. Convertera-se na esposa de um desaparecido. Muitas vezes dissera que ninguém se sumia no país e que os desaparecidos eram mentiras antipatrióticas. Quando via as mulheres desfiguradas desfilando todas as quintas-feiras na praça, com os retratos dos familiares presos ao peito, afirmava que eram pagas pelo ouro de Moscovo. Jamais imaginou poder encontrar-se um dia na mesma situação dessas mães e esposas que procuravam os seus. Sob o aspecto legal, não era viúva nem o seria antes de passados dez anos, altura em que a lei lhe forneceria o atestado de óbito do marido. Não pôde dispor dos bens deixados por Eusebio Beltrán nem controlar os escorregadios sócios que se evaporaram com as acções das suas empresas. Permaneceu na mansão, simulando aparências de duquesa, mas sem dinheiro para manter a rotina de senhora de bairro rico. Acossada pelas despesas, esteve a um passo de espalhar gasolina pela casa, para que fosse destruída pelas chamas e pudesse receber o seguro. Até que Irene teve a subtil ideia de obter rendimentos com o andar inferior".


De Amor e de Sombra



"Gostaria de voar numa vassoura e dançar com outras bruxas pagãs no bosque à luz do luar, invocando as forças da terra e afugentando demónios, quero converter-me numa velha sábia, aprender antigos encantamentos e segredos de curandeiros. Não é pouco o que eu pretendo. As feiticeiras, tal como os santos, são estrelas solitárias que brilham com luz própria, não dependem de ninguém, por isso carecem de medo e podem lançar-se cegas no abismo com a certeza de que em vez de se destruírem sairão a voar. Podem converter-se em pássaros para ver o mundo de cima ou em vermes para vê-lo por dentro, podem habitar noutras dimensões e viajar para outras galáxias, são navegantes num oceano infinito de consciência e conhecimento”

Paula

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Miranda July



"Qual é a coisa mais apavorante que já aconteceu com você? Tem a ver com um carro? Aconteceu num barco? Foi um animal? Se você respondeu sim a qualquer uma dessas perguntas, não me surpreendo. Carros batem, barcos afundam e animais são mesmo sinistros. Por que não faz um favor a si mesmo e fi ca longe dessas coisas?"

"Está com raiva? Soque uma almofada. Adiantou? Não muito. Nos dias de hoje as pessoas estão com raiva demais para socar. Você deveria tentar apunhalar. Pegue uma almofada velha e a coloque na grama em frente à casa. Apunhale-a com uma grande faca pontuda. De novo, de novo e de novo. Apunhale com força sufi ciente para que a ponta da faca entre na terra. Apunhale até que a almofada se acabe e você esteja simplesmente apunhalando a Terra de novo e de novo, como se quisesse matá-la por continuar a girar, como se estivesse se vingando por ter que viver neste planeta dia após dia, sem ninguém"

"Olhei para Pip e por uma fração de segundo senti como se ela não fosse ninguém especial no esquema maior da minha vida. Era só alguma garota que tinha me amarrado à sua perna para ajudá-la a afundar quando ela pulasse da ponte. Então pisquei e estava outra vez apaixonada por ela".

ESSA PESSOA

"Alguém está ficando animado. Alguém em algum lugar está tremendo de excitação porque algo fantástico está para acontecer a essa pessoa. Essa pessoa esperou e sonhou e agora isso está realmente acontecendo e essa pessoa mal pode acreditar . Mas acreditar não é o caso aqui, o tempo de fé e fantasia já acabou, isso está mesmo acontecendo, de verdade. É o caso de dar um passo á frente e se curvar. Talvez seja o caso de se ajoelhar, como quando alguém é cavaleiro sagrado. Quase nunca alguém é cavaleiro sagrado. Mas essa pessoa pode se ajoelhar e receber em cada ombro um toque de uma espada. Ou, o que é mais provável, essa pessoa estará num carro ou numa loja ou debaixo de um toldo de vinil quando acontecer. Ou na internet, ou no telefone. Pode ser um e-mail res: sua sagração. Ou uma enorme mensagem telefônica sem sentido e cheia de risadas na qual todas as pessoas que essa pessoa já conheceu estão falando num microfone e todas estão dizendo, Você passou no teste, era só um teste, nós estavamos só brincando, a vida real é muito melhor do que isso. Essa pessoa está rindo alto de alívio e ouvindo de novo a mensagem para saber o endereço de onde todas as pessoas que essa pessoa já conheceu estão esperando para abraçar essa pessoa e traze-la de volta a vida. É realmente excitante. E não é só um sonho, é real.
Estão todas esperando perto de uma mesa de piquenique num parque pelo qual essa pessoa já passou de carro várias vezes. Lá estão elas, todas elas. Há bolas de gáz presas nos bancos e a menina ao lado da qual essa pessoa costumava ficar no ponto de ônibus agita uma bandeirinha. Todas estão sorrindo. Por um momento essa pessoa quase fica arrasada com a cena, mas isso seria como se essa pessoa ficasse deprimida no dia mais feliz de sua vida, e então essa pessoa se anima e junta a multidão.
Professores de matérias nas quais essa pessoa nem era boa estão beijando esssa pessoa e repudiando as próprias materias que ensinavam.
Professores de matemática estão dizendo que matemática era só um jeito engraçado de dizer “eu te amo”. Mas agora eles estão simplesmente dizendo isto, eu te amo, e os professores de química e educação física dizem a mesma coisa e essa pessoa pode afirma que eles dizem isso pra valer. É absolutamente incrível. Alguns imbecis, idiotas e babacas aparecem de vez em quando, e é como se tivessem feito plástica, seus rostos estão desfigurados pelo amor. Os formosos babacas são puros e gentis, e os feiosos imbecis são doces, e eles estão dobrando o casaco dessa pessoa e pondo em algum lugar em que ele não vai se sujar.
Melhor de tudo, todas as pessoas que essa pessoa já amou estão ali.
Mesmo as que foram embora. Elas apertam a mão dessa pessoa e dizem a essa pessoa como era difícil fingir estarem furiosas e sair dirigindo e nunca mais voltar. Essa pessoa quase não consegue acreditar, parecia tão real, o coração dessa pessoa foi partido e se curou e agora essa pessoa mal sabe o que pensar. Todos explicam que aquilo era absolutamente necessário para que se soubesse como essa pessoa era forte. Ah, veja, lá está o médico que prescreveu o remédio que deixou essa pessoa cega por uns tempos. E o homem que pagou a essa pessoa duzentos dólares para fazer sexo com ele tres vezes quando essa pessoa estava totalmente sem grana. Esses dois homens estão a espera, eles parecem se conhecer. Os dois trazem medalhinhas que estão espetando nessa pessoa; são condecorações de grande honra e força. Essas condecorações brilham a luz do sol, e todos aplaudem.
Essa pessoa sente de repente necessidade de checar sua caixa postal. É um velho hábito e, mesmo que tudo vá ser maracilhoso de agora em diante, essa pessoa ainda quer reeber cartas. Essa pessoa diz que vai voltar logo e todas as pesoas que essa pessoa já conheceu dizem, Tudo bem, não se apresse. Essa pessoa entra em seu carro e dirige até o correio e abre a caixa e não há nada. Mesmo sendo uma terça-feira que é sabidamente um dia bom para o correio.
Essa pessoa está tão desapontada, essa pessoa volta para o carro e, tendo se esquecido por completo do piquenique, dirige até a sua casa e checa o serviço de mensagens e não há novas mensagens, só aquela antiga sobre “passar no teste” e “a vida ser melhor”. Também não há e-mail com certeza porque todo mundo está no piquenique. Essa pessoa não parece disposta a voltar para o piquenique. Essa pessoa percebe que ficar em casa significa se afastar de todas as pessoa que essa pessoa já conheceu, mas o desejo de ficar é muito forte. Essa pessoa quer tomar um banho e depois ler na cama.
Na banheira, essa pessoa faz as bolhas girarem e ouve o som de milhões delas estourando ao mesmo tempo. Isso quase faz um único som em vez de muitos sons minúsculos. Os seios dessa pessoa mal se projetam para fora da água. Essa pessoa empurra as bolhas para os seios e cria estranhas formas com a espuma. A essa altura todos devem ter percebido que essa pessoa não vai voltar para o piquenique. Estavam todos errados; essa pessoa não é quem eles pensaram que essa pessoa fosse. Essa pessoa afunda na água e move seu cabelo como uma anêmona marinha. Essa pessoa pode ficar debaixo d’água por um tempo impressionantemente longo, mas só se for numa banheira.
Essa pessoa imagina se algum dia haverá uma competição olímpica de prender a respiração de baixo da água do banho. Se houvesse uma competição dessas, essa pessoa com certeza venceria. Uma medalha olímpica poderia redimir essa pessoa aos olhos de todas as pessoa que essa pessoa já conheceu. Mas uma competição dessas não existe, então não haverá redenção. Essa pessoa lamenta o fato de ter arruinado sua única chance de ser amada por todos; quando essa pessoa sobe na cama o peso dessa tragédia parece se abater sobre o peito dessa pessoa. E é um peso reconfortante, de uma carga quase humana. Essa pessoa suspira. Os olhos dessa pessoa começam a se fechar, essa pessoa dorme".


É claro que você sabe do que estou falando

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Hilda Hilst

XI

"Levarás contigo
Meus olhos tão velhos?
Ah, deixa-os comigo
De que te servirão?

Levarás contigo
Minha boca e ouvidos?
Ah, deixa-os comigo
Degustei, ouvi
Tudo o que conheces
Coisas tão antigas.

Levarás contigo
Meu exato nariz?
Ah, deixa-o comigo
Aspirou, torceu-se
Insignificante, mas meu.

E minha voz e cantiga?
Meu verso, meu dom
De poesia, sortilégio, vida?
Ah, leva-os contigo.
Por mim.

* * *

XIX

Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro

Te tomaria
Úmida, tênue

E então descansarias.

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono

Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.

* * *

XXIII

Porque conheço dos humanos
Cara, Crueza,
Te batizo Ventura
Rosto de ninguém
Morte-Ventura
Quando é que vem?

Porque viver na Terra
É sangrar sem conhecer
Te batizo Prisma, Púrpura
Rosto de ninguém
Ungüento
Duna
Quando é que vem?

Porque o corpo
É tão mais vivo quando morto
Te batizo Riso
Rosto de ninguém
Sonido
Altura
Quando é que vem?"


Da morte. Odes Mínimas

A Federico García Lorca
 

"Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
que bebi na tua boca a fúria de umas águas
eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah! Se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
e cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.


Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
a tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas se está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?

“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”


E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
azuis, braços e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
de infância, de plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto".

Júbilo, Memória, noviciado da paixão 

Delicatessen


- Crônica de Hilda Hilst para o Correio Popular de Campinas-SP -



      "Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.

      Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais".